19 de out. de 2009

Repensando a obra de HO

ESSE TEXTO ESCREVI EM 2007. ACHO PERTINENTE, TAMBÉM, COMO FORMA DE REPENSAR A PARTIR DA TRAGÉDIA ACONTECIDA CXOM A OBRA DE HÉLIO OITITICA, ANTEONTEM, 17 DE OUTUBRO DE 2009



OITICICA COMO UM CAFONA QUALQUER
Por Rubens Pileggi Sá

“Lembro-me de como Mondrian, por exemplo, é injustiçado ao ser colocado tão esteticamente dentro de vidro, em larguíssimas molduras inteligentemente boladas para suas obras, em lindas salas, como um acadêmico cafona qualquer”.
H.O. in Aspiro ao Grande Labirinto (1984: P118)

Emoções de fim de ano
E não é que o clima de fim de ano na seara das artes plásticas esquentou, mesmo? Entre algumas polêmicas, pode-se contar a contenda da crítica feita por Camillo Osorio sobre o cuidado das peças e do destino do Centro de Arte Hélio Oiticica e a resposta dada por César Oiticica, diretor e dono particular das obras do irmão, que respondeu irado às colocações do crítico de O Globo; outra que deu o que falar foi a do anúncio da Bienal do Vazio, proposta pelo curador Ivo Mesquita, que deixará o segundo andar do pavilhão da Bienal de São Paulo, ano que vem, sem obras, causando uma tremenda celeuma no meio artístico e; essa última agora, iniciada pelo jornalista da Folha de São Paulo, Luciano Trigo, sobre obras que levam maçã, mármore e paçoca de amendoim para as galerias de arte, no país da tropa da elite.

Releituras como posição crítica
A primeira coisa que é possível levantar dessas questões todas, é que se repetem muito os personagens – ou seus similares - comandando a direção dos debates que foram desenvolvidos há mais de 40 anos atrás e que, uma boa (re)leitura das propostas daquele momento, nos faria (re)pensar vários desdobramentos das artes tupiniquim, particularmente esse das metáforas artísticas e sua realização formal. Não que tais personagens e modelos deixem de ter suas razões para estarem no campo de debates, mas como é que as dissonâncias de discurso simplesmente parecem não possuir tal força ativa dentro do circuito, como se fossem incapazes de criar significação dentro da mesma situação? Uma coisa é certa, quando o “contramodelo” – como diz Hal Foster, in Recodificacação, de 1996 – passa a se tornar, ele também, um padrão imposto, todo o discurso transformador incorporando a pulverização e a heterogeneidade deixa de acontecer, ou é tomado como desagregação.

O museu é o mundo
Só para esclarecer, uma dessas possibilidades de interpretação pode ser encontrada nos escritos de julho de 1966, de H.O., onde, em vários trechos, fica clara sua “posição social-ambiental”, sua posição poético-política, ao dizer que “tal posição só poderá ser aqui uma posição totalmente anárquica, tal o grau de liberdade implícito nela”. Escrevendo sobre “leis interiores se refazendo constantemente” na obra, diz que “o museu é o mundo”. Vejamos isso, onde ele toca no assunto da exibição de suas obras: “de nada significa ‘expor’ tais peças (seria um interesse parcial menor), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador”. E o que dizer quando o assunto é a “obra-obra”, que foi a apropriação de um conserto público que estava sendo realizado nas ruas do Rio de Janeiro, do qual o artista se “apossou”, durante alguns momentos, de algo que estava acontecendo, chamando isso de “manifestação ambiental”? Quando Oiticica fala da “consciência de um não-condicionamento das estruturas estabelecidas” (4 de março de 1968) não é do acondicionamento de obras em museus e galerias, ou da herança de resíduos materiais o assunto tratado, mas de uma experiência onde o participante é transformado pela obra e a obra, por sua vez, é dada à modificação. Assim, o tempo enquanto processo não pode ser congelado.

O paradoxo da incompletude
Um garoto começando a entrar/estudar (sobre) arte, lendo H.O., não vai poder mais acreditar em pureza (“a pureza é um mito”), vai querer ir direto para a experiência “suprasensorial” como um dado da realidade. Só que, como faltam os tais “contramodelos” abrigando a possibilidade de experiências estéticas dissolvidas na vida, esse mesmo garoto vai acabar caindo nas informações da Folha de São Paulo e no(a) Globo e vai sentir, no mínimo, que alguma coisa está incompleta, ao ver um H.O. colocado tão esteticamente em lindas salas, “como um acadêmico cafona qualquer”. E como o discurso da incompletude também foi padronizado, nosso garoto, coitado, vai pensar que o esquizofrênico é ele, não nossa época.

No direito de reivindicar
Certamente a arte como um jogo de formas mais ou menos artesanais, feita seja do material que for, mesmo uma pintura, continua e continuará existindo. Bem como a arte feita em computador, dita virtual, ou a que se utiliza de meios híbridos para se realizar, não será o futuro da arte. Não sejamos ingênuos.
Mesmo a arte “desmaterializada” que vem acontecendo há anos, ou, “um estado de arte sem arte” – pensada através das propostas de uma artista como Lygia Clark – já não causa mais nenhum choque como antes. Mas a verdade é que ela ficou “escondida” no meio de tantas metáforas, citacionismos e subjetividades produzidas como linguagem, que só há pouco tempo se viu no direito de reivindicar um lugar ao sol, afinal, em seu estatuto – Situacionismo, Fluxus, Nova Objetividade, Arte Conceitual, etc. – cria a relação entre arte e vida.

Estudo de casos

Três casos bastam como ilustração de caso, onde – não é que a forma deixe de ser levada em consideração, ou o artesanato da feitura do trabalho seja excluído, ou que prescinda de tecnologia eletrônica para sua existência – o dado real fala por si, a relação do espectador com a obra é levada em consideração e o tempo é parte do processo.
O primeiro é de Ricardo Basbaum, particularmente dos trabalhos em que ele coloca um sofá, algumas plantas, algum diagrama, um monitor acoplado a uma câmera de vídeo, dentro de um ambiente bastante familiar. Quando uma pessoa passa pelo vídeo, sua imagem é capturada e remetida para o monitor de tv, criando assim uma espécie de estranhamento da própria familiaridade distanciada que aquilo parecia possuir.


O segundo caso ilustrativo das mesmas concepções criativas que levam as possibilidades ambientais/vivenciais ao extremo, foi o evento organizado por Bob N no MAC Niterói, em novembro passado, intitulado “Visões do Paraíso”. Além de ser ao “ar livre”, parecia um vernissage cuja obra era o próprio ato de estar ali. Foi oferecido, a quem quisesse, algumas espumas forradas com tecido azul para se sentar, peixe frito e música, comandada por Djs. Se for possível pensar em uma metáfora para isso, poderíamos levar em consideração a própria paisagem, concebida pelo artista como uma visão.


O terceiro caso ilustrativo é o mais “desmaterializado” de todos. Aqui a obra acontece enquanto está sendo transmitida pela internet, em tempo real. Fora isso, alguns textos que ficam no blog e o registro de fotos e ou vídeos é tudo o que sobra. Trata-se do trabalho do Orquestra Organismo (http://www.organismo.art.br/), um grupo nascido em Curitiba, cujos integrantes são músicos, artistas plásticos e outros colaboradores que se reúnem para qualquer tipo de atividade que considerem interessante, ou que, a partir de uma situação dada, possam desenvolver criações que vão de encontros de confraternização – físicos e virtuais – à invenção de gambiarras tecnológicas. Como eles próprios colocam: “(o coletivo) dedica-se à recombinação e abertura de códigos de conhecimento”.

Contra o conformismo
Para uma idéia geral da diversidade de horizontes que se abrem hoje em dia, além das polêmicas pontuais, outros vários casos podem vir à tona. Mostra que a herança maior que um artista como H.O. deixou foi sua lucidez e a capacidade de pensar sua obra inserida na transformação da realidade. E é preciso entender isso como motivação de ação, ímpeto ao fluxo, não congelamento de uma arte dada como objeto de museu, envolvida em mil metáforas citacionistas, fechada em si.
Fica aqui uma convocação geral à releitura de certas visões dadas como definitivas. Começar pelos textos de H.O. é um bom caminho para enfrentar as “adversidades” do discurso padrão que quer fazer dele um “cafona qualquer”.

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