19 de out. de 2009

Incêndio no H.O. e retomada de questões

ESSE TEXTO ABAIXO ESCREVI NA OCASIÃO DA EXIBIÇÃO DA MOSTRA TROPICÁLIA, EM 2007, no MAM, Rio de Janeiro. ACHO QUE DÁ UMAS PISTAS PARA PENSAR SOBRE A OBRA DE HÉLIO OITICICA


A remontagem como documento

“Mondrian Barato

Contra o acumulativo acumulado mesmo, principalmente a acumulação da sapiência – cúmulo da comilância (sic)”

(Wally Salomão, Babilaques)


1 – Conceituada como um grande acontecimento, incluída no calendário de museus da Europa e dos Estados Unidos, a mostra Tropicália, de curadoria do argentino Carlos Basualdo, atualmente em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, faz uma homenagem/rememoração dos 40 anos do movimento Tropicalista, no Brasil. A montagem privilegia um recorte histórico, apresentando o trabalho de artistas atuantes à época, com outros, contemporâneos, cujos trabalhos se relacionam com aquelas idéias desenvolvidas por Hélio Oiticica e seus companheiros de neoconcretismo.

2 – O movimento Tropicalista – honra e glória da arte verde-amarela – enfim, passa por um momento de reconhecimento internacional, trazendo divisas de todas as espécies para terras tupiniquins. Hélio Oiticica, Lygia Clark, Caetano Veloso, Gilberto Gil e todos os demais – grandes – daquele fértil período, conquistam, cada vez mais, o mundo globalizado. Como diz Tom Zé – outro tropicalista – sobre a Bossa Nova, o Brasil deixa de exportar a mais baixa forma de geração de capital, que é a matéria-prima do extrativismo, para exportar a mais alta forma de trabalho humano, que é fruto do espírito: a arte.

3 – Abacaxi, banana, mulata, samba, carnaval, futebol, programas populares de televisão, favela, animais e aves silvestres, paisagem, beleza natural. O exótico passa, com o Tropicalismo, a ser assumido como parte das composições musicais, como tema para pinturas, esculturas, dramaturgia, etc. Serve como exaltação, denúncia, inspiração para um país mergulhado na ditadura e em processo de industrialização. Guitarras elétricas invadem a música popular. Materiais não considerados como “artísticos”, como pedrinhas, plásticos, sacos, coisas ordinárias, passam a fazer parte dos ateliês dos artistas. Saem do espaço plano do quadro pendurado na parede para o espaço tridimensional, incorporando o entorno, a paisagem, a arquitetura. Mudam a maneira de ver e pensar a arte.

4 – Já no Manifesto Neoconcreto, de 1959, assinado por Ferreira Gullar e outros, é clara a questão do tempo e do processo como parte sensível da obra. Portanto, a questão do público como participante do trabalho artístico já estava sendo apontada pelo menos 8 anos antes da mostra Nova Objetividade Brasileira, cuja obra Tropicália foi montada pela primeira vez, no mesmo MAM que ora a vê remontada.

Além disso, o que torna radical a transformação conquistada a duras penas pelos artistas daquela época, é o fato de terem levado a questão da arte para além da obra, destacando a questão processual, participativa, cujo acontecimento artístico só poderia ser experimentado caso o público interagisse com a proposta do artista: o público modifica a obra e a obra modifica o público. Então, o público se modifica e a obra, também. Tudo passa a ser uma questão de contexto. Já não faz mais sentido criar uma obra para a eternidade congelada, mas para que ela seja uma proposta de transformação no tempo, além de uma incorporação no espaço onde ela é apresentada. É isso que tem feito nossa arte ser “descoberta” lá fora, quando a famosa idéia de “desmaterialização” ganha um terreno aberto, capaz de criar toda espécie de conexão com os experimentos mais interessantes realizados tanto na arte digital quanto na chamada arte ativista.

5 – Quando Lygia Clark chama de Objetos Relacionais suas invenções, ou quando Hélio Oiticica convoca as pessoas a participarem de suas obras, tal questão é portadora de uma força que hoje já nem damos conta do quanto aquele gesto foi e é radical para a compreensão da questão artística. Guardada as devidas proporções, representa algo como a descoberta da perspectiva, no Renascimento, em relação às figuras toscamente colocadas na superfície dos quadros, na Idade Média.

6 – Mas isso já está colocado, de todo modo. O que interessa aqui, depois de todos esses preâmbulos, é pensar se a remontagem de um desses trabalhos pode ser considerada um original da obra do artista, ou se um trabalho portador dessa radicalidade conceitual não se transformaria apenas em um objeto morto, de Museu, como texto relatando um caso, em uma época passada. Digamos, como o registro em vídeo, ou em foto, de um acontecimento. Apenas um documento, ou um testemunho do que foi aquilo, em certo momento.

Por exemplo, os remakes dos Parangolés – capas para serem vestidas – de Oiticica, podem ser considerados uma experiência artística, para quem os usa, no Museu? “As crianças da escola entraram no Penetrável Tropicália”: é correta esta sentença? Seria menos “arte” a experiência caso elas tivessem contato com a obra, por livro, em suas escolas?

7 – Vejamos o que diz Ferreira Gullar, no Manifesto Neoconcretista, de 1959 – assinado inclusive por Lygia Clark – que concebeu a obra de arte como um organismo vivo: “... nem como ‘máquina’ nem como ‘objeto’”. Portanto, uma obra engessada tanto conceitualmente como fisicamente no tempo perderia suas qualidades “orgânicas”.

Sendo assim, estamos em um terreno um pouco menos exato do que aqueles em que se penduravam quadros e o máximo de questões que a (re)montagem poderia despertar estava no debate sobre a arquitetura do lugar onde o trabalho ia ser exposto.

8 – Não é simples o paradoxo. Como remontar uma Lygia Clark atualmente sendo fiel aos seus princípios de criação? Dando bolinhas para as pessoas as pegarem com luvas? Mostrando o plástico que ela usou na época em algum “paciente”? Mostrando fotos? Catálogos de época? Vídeos que foram realizados sobre seu trabalho?

Vamos pensar o seguinte: um bom material documental não seria o suficiente para colocar o público (o cliente dos tempos neoliberais) do Museu em contato com a obra Tropicália? Mais, chegando ao absurdo: não sendo suficientes a documentação de época, seria possível pensar em remontar a Tropicália só para fotografá-la e mostrar esse material, poupando a questão ridícula da prisão das araras tratadas como objetos de arte? Mais uma bala na agulha: tomar os enunciados de Oiticica sobre o próprio “ambiente” em discussão e levar as pessoas para ver “um fundo de uma chácara” como colocado em seus escritos? Talvez isso estivesse mais próximo ao caminho revolucionário proposto por esse artista que inventou a “probjetessência” – um tapete jogado ao chão como possibilidade de ser isso uma situação de arte – como se coloca nas correspondências trocadas entre HO e LC.

9 – De fato, é uma grande mostra essa exibição no MAM, mas deve ser vista como um documento de época, onde as remontagens decoram o discurso da arte. E não como arte, exatamente, uma vez que esta se modifica no momento mesmo em que é lançada, capturando o público participante que interage com a obra, modificando e sendo modificado por ela no tempo e no espaço.

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