14 de set. de 2009

Vito Acconcci: um a menos para amar

Vito Acconci naceu no Bronx, em janeiro de 1940.


Começo este texto lembrando o professor Roberto Corrêa do Santos dizendo que é uma dor terrível quando os outros não podem receber o amor que temos para dar a eles. Pessoas que gostaríamos de amar mais, mas que não podem receber todo nosso amor.

Comecei a constastar a veracidade de tal sentença depois da palestra do Vito Acconci, sexta, dia 11 de setembro de 2009, no Oi Futuro, no Catete, no evento Presente-Futuro capitaneado por Daniela Labra. Depois do evento, no bar, uma colega me alertou: “a gente acaba sendo o chato a ser evitado quando não concorda com a maioria”. Pois é.

Vito Acconci, para mim, sempre foi considerado um Deus. Cheguei antes para poder pegar um lugar para assisti-lo, mas fiquei surpreso que não tinham 5 mil, 10 mil pessoas assistindo-o. Sim, porque se um astro da música vem ao Brasil, como os Rolling Stones, junta-se um público de 1 milhão de pessoas. Como artes visuais é menos popular do que música, pelo menos mais de mil pessoas deveriam assisti-lo. Não tinha 300 pessoas na platéia. Tudo bem. Azar de quem não foi, me consolei.

Pudera. O maior jornal do Rio de Janeiro deu apenas uma notinha da presença do grande artista, entre nós. Nem ao menos a capa. Nem uma entrevista. Como disse um amigo, “muita ignorância”. Ok. Você não precisava saber quem era Vito Acconci até ler este texto. Mas eu vou explicar como foi a palestra. E porque me decepcionei. Mesmo que eu fique com a pecha de chato, ao menos exorcizo esse fantasma. E paro de abordar as pessoas para perguntar o que elas acharam da palestra para, em seguida, meter o pau. Mas verão que tenho minhas razões.

Mal acomodados em uma das salas de exibição do Oi Futuro, sentados ao chão ou em almofadas, de pé, por mais de uma hora, vimos Acconci falar de seu processo criativo. Uma palestra que iria ligar seu inicio de carreira como poeta, passando pelas performances, objetos e chegando ao design e arquitetura. Eu estava excitado para compreender tão rico “atravessamento”. Hibridismos entre linguagens me interessam. Alguém ainda disse que ele sempre dá suas palestras em forma de performance. Ia ser o máximo.

De fato, acompanhei com olhos muitos atentos – e alguns pequenos movimentos de alongamento no corpo incomodado pela posição – o artista iniciando sua fala, mostrando sua insatisfação com aquilo que ele tinha chegado, em poesia, tentando criar uma performance com o corpo, através das letras. Falou sobre o momento em que se deu tal criação, que foi durante a Guerra do Vietnam. Que ele queria algo que fosse, também, ação. Lembrei Mallarmè, em “Um Lance de Dados”, onde o olho flutua pelas páginas com o lance de dados, que jamais abolirá o acaso. E no quanto esse poema, do século 19, era atual. Físico, material, táctil, propondo a participação ativa do leitor no momento mesmo da leitura. Assim como fez Acconci, mostrando a imagem de seu poema visual.

Maravilha! Vamos em frente.

A partir daí começou a perseguir pessoas na rua, em performances que duravam de 3 minutos até 7 horas. Isso em 1969. Mas ele ainda estava insatisfeito. Queria um tipo de performance em que ele não precisasse aparecer.

Ok!

Ai vem uma de suas mais fortes obras, onde ele se masturba debaixo do chão, em uma galeria. Seedbed, de 1972. É assim: o artista reconstrói um chão na sala da galeria, com alguma inclinação e fica, durante duas (acho que isso) semanas, durante o tempo em que a galeria está aberta ao público, se masturbando. Algumas implicações relacionadas à body art, ao conceitual, à desmaterialização, são óbvias. Outras, ligam-se ao desejo, à sublimação, não deixando de ser, também, provocativa, o que fazia parte de sua estratégia, levando o público a reações apaixonadas.

Mas Acconci queria mais. Queria perfomances em que ele não precisasse participar da situação. E nos brinda, mostrando uma instalação/objeto, Instant House #2, de 1980, feita com quatro chapas de madeira, estiradas ao chão, cortadas, cada uma pintada com a bandeira dos E.U.A. Um mecanismo do tipo balanço é ativado por cordas e roldanas presas às peças e quando o espectador senta ao balanço, as placas se fecham e formam um objeto tridimensional – uma caixa – em forma de casa. Do lado de fora, pintada, a bandeira da Rússia. Lembremos da Guerra Fria.

Mas o que estava em jogo tinha a ver com uma continuidade, descontinuidade de espaços. Um abrir-se e fechar. Juntar o dentro e o fora. Casar os inimigos. De tornar algo bi em tridimensional.

Remontava-se, com isso, toda a história da arte, depois do modernismo: colagem, cubismo, construtivismo, Jasper Johns, Pop, Minimal, Conceital, etc. Em suma, uma peça síntese, cuja aparição, traz em si toda a história, cultura e arte que passou, apontando para uma cultura que devia se desdobrar, se abrir, se permear. Mas o Sr. Acconci da palestra ainda não estava satisfeito. Apesar de se dirigir na direção de uma arquitetura mais flexível e permeável, queria trabalhar coletivamente. Disse que era bom para ter idéias gerais, mas não para resolver os detalhes. Uma insatisfação como sintoma de inquietação criativa, eu tinha entendido.

É importante que se diga. Os anos 80 e 90 foram duros para artistas radicais – radicais no sentido de trazer toda a raiz da cultura naquilo que fazem. Como vender aquilo que Acconci fazia, tão provocativo, tão evocativo, tão pouco comercial, em uma época em que a pintura voltou a ser “a bola da vez” do mercado? Uma época em que jovens, do dia para noite, eram lançados ao topo da fama e do dinheiro e virando capa de revistas de arte internacional. Como se locomover contra a corrente enquanto Wall Street ditava as regras e o muro de Berlin era posto abaixo, com a declaração que direita e esquerda não fazia mais sentido no mundo globalizado neoliberal?

Além de duro aqueles tempos, deve ter sido chato e triste para artistas do porte de Acconci ver gente sem nenhum talento, mas com estratégias de marketing, se darem bem no circuito artístico, com exposições em grandes museus, viajando pelo mundo. Um artista com trabalhos como a mesa que sai para fora do restaurante, se projetando para o espaço, em um edifício, tornamdo-se uma espécie de trampolim. Ou, mais recentemente, o abrigo feito para sem-tetos, em 2002, embaixo do viaduto do Cambuci, em São Paulo, dentro do evento ArteCidade.

Mas isso é só uma suposição minha, porque, na palestra, Acconci pula dos anos 80 para os anos 2000 e, aí, já não tem mais nada a reclamar. Trabalha com um grupo de designers e arquitetos fazendo projetos encomendados pelo mercado, como a loja de roupas jovens na qual eles reformaram a arquitetura e fizeram o mobiliário, todo de materiais que, enfim, a tecnologia pode proporcionar. Materiais leves, moldáveis, translúcidos, etc.

Mas parece que a ironia tornou-se um pouco debochada, como a “casa dos pesadelos” que projetou, onde tudo fica de cabeça para baixo, em uma alusão à “casa dos sonhos” que todo estadunidense gostaria de morar. Ou a maquete para a reconstrução das Torres Gêmeas, destruídas há exatos 8 anos atrás, que deveria ser uma ruína, para “enganar os terroristas”, que provavelmente não iriam destruir algo que tem aparência destruída. A foto que mostra a maquete, aliás, já é toda colorida e tem aquele ar de projetada no computador, toda high tech. Prefiro os feixes de luz propostos por outras pessoas e realizado já, no mesmo local, como referência à tragédia.

Daí em diante, o que poderia ser chamado de segunda parte da palestra, é um desfile de projetos arquiteturais e de objetos criados em escritório, para dar conta de uma concorrência da cidade de Nova Iorque para remodelar a iluminação; ou decorar boates, ou equipamentos para parques, etc. Certamente levando em consideração aquelas reclamações passadas, agora satisfeitas, como a criação de buracos unindo dentro e fora, a maleabilidade dos materiais, a “performance” do corpo em relação à arquitetura, mas de forma totalmente acrítica, sem levar em consideração a sustentabilidade e contexto, adesistas em relação a uma demanda de entretenimento e, sobretudo, formalistas. Bonitas? Eu diria cafona, de mau gosto.

Saí antes de terminar sua fala. Tive de ouvir que as pessoas não são obrigadas a ter coerência. Eu também não acho. Aliás, “se fosse para fazer sentido, eu entrava para o exército”. E eu nem vou exigir que o cara, aos 69 anos, continue se masturbando debaixo do chão. Claro que não. Mas o que a gente não pode nem deve aceitar é a frouxidão. Arte tem de ter virilidade. Não é uma questão de gênero, continua sendo uma questão de tesão, de saber criar tensão, de colocar amor e generosidade naquilo que se faz. Ou, como diz Douglas Crimp, em “As ruínas do Museu”, no capítulo sobre a redefinição de espaços, onde fala da obra de Richard Serra, que o artista não pode se tornar um “operador técnico” terceirizado à serviço do mercado.

O que está em jogo, 20 anos depois que o neoliberalismo transformou o mercado em Deus, não é uma questão de ser contra ou a favor das mudanças, de aceitar ou não a tecnologia, mas da capacidade de a arte contemporânea dialogar, de igual para igual, com outras áreas, os espaços da cidade, as redes, os fluxos, as objetividades e subjetividades colocadas em ação. E, nesse sentido, não podemos esperar que o Estado ou o mercado venham até a nós dizer o que e como devemos “embelezar” a cidade, as praças, os parques, as ruas, os museus, as galerias. Temos que nos tornar agentes desse processo, impedir que a sanha imobiliarista, capitalista, devore nossa memória, nossa história, nossa cultura e nossa arte. Que as camadas sejam reveladas e não destruídas, por outras, e depois outras, no eterno retorno do novo, da novidade, ou, quando muito, ao bel prazer das (dês)políticas públicas.

Pode ser engraçadinho entrar e sair pelos buracos dos objetos que Vito Acconci vem realizando, agora que ele não tem mais nada a reclamar. E embora tudo aquilo que ele foi e fez tenha sido altamente significativo, o fato é que o que ele realiza agora só é orgânico em relação à forma, sem nenhuma preocupação a mais comigo que queria tanto poder amá-lo, ainda.

RJ – 14 de setembro de 2009

3 comentários:

Cristiane Bouger disse...

Oi Rubens!

Interessante o seu texto. Acho bastante coerente a sua perspectiva. No entanto, após viver 3 anos em NY, tenho pensado que nenhum artista americano que alcance um lugar no mercado, abriria mão deste espaço por perspectivas mais radicais, especialmente aquelas, contextualizadas nas décadas de 60 e 70. O "dar certo" aqui é um aspecto cultural muito forte. Mais do que qualquer pessoa na América Latina possa imaginar. As pessoas são educadas para esse lugar desde que nascem e crescem moldadas pelos adjetivos "vencedor" e "perdedor" que em inglês têm conotações definitivamente mais extremas do que em português. Mais do que isso... a arte radical pela qual nos apaixonamos vêm normalmente de um não lugar nesta expectativa sócio-cultural. Uma vez alcançado esse lugar, o radicalismo tende a apaziguar, sim. Ou a fórmula tende a se repetir. Há alguns meses atrás senti uma profunda tristeza em uma festa aqui, ao assistir o aniversariante bêbado tirando suas calças no palco do bar sem ter condições de colocá-las de volta, sôfrego e caindo, enquanto todos os seus amigos fotografavam a cena com seus iPhones e demais celulares para colocar as fotos no facebook no dia seguinte. O aniversariante provavelmente não iria se importar, no entanto. Naquele exato momento, analisei a minha tristeza e questionei se o que eu estava presenciando ali não seria semelhante ao que acontecia no contexto da The Factory do Andy Warhol. Contexto este, que já mitifiquei, afinal as fotos pb da época são lindas, não? Sempre adorei o Velvet Underground, mas se você assistir as entrevistas da Nico, verá nela uma profunda decepção e descrença com aquele contexto. E não faz muitos meses, li uma frase do Lou Reed que é suficiente para não querer ouví-lo por um bom tempo. Se tratava de um estacionamento de caminhões de lixo que estão colocando próximo ao lugar onde a Laurie Anderson tem um estúdio. Ela e toda a vizinhança não querem que isso aconteça e em dado momento o Lou Reed dispara a bonita frase: "Por que o prefeito não coloca isso perto da casa dele?" Ou perto do St. Vicent Hospital. "Assim você pode envenenar muitas pessoas doentes ao invés de envenenar pessoas que não são doentes". (New York Magazine, pag. 20, Março 2009).... Pois é. E vai dizer que você não adora ou já adorou Femme Fatale ou Venus in Fur? Tenho acreditado cada vez mais que nós só não mitificamos a nós mesmos no Brasil porque não valorizamos o registro do que realizamos. É impressionante o poder da fotografia impressa na revista ou livro. E isso é geralmente o que nos chega. Entre o Acconci de 1968 (acho que são desse ano alguns dos trabalhos iniciais) e o Acconci que você encontrou, há 40 anos de uma vida que se transforma, de um corpo que envelhece e quer mais calma, de aluguéis caríssimos para se pagar, e de ideais que evanecem. Não há ideais que permaneçam quando os contextos se alteram e isso é sabido por aqui. Acho que muitos dos projetos arquitetônicos dele são ainda radicais, embora não os aprecie. Enfim... várias coisas aqui merecem uma conversa mais longa ou irão soar ingênuas ou pior ainda, irão soar conformistas. Seguimos então. Obrigada pelo texto! Acho muito válido o desabafo e os questionamentos que você incita. O texto me fez pensar sobre mais do que eu tenho tempo para escrever aqui. Super abraço! Cristiane

Anônimo disse...

Muito boa crônica Rubens
Conheci o Acconcci quando veio para o Arte Cidade, vi alguns de seus trabalhos numa conferência, senti a mesma coisa, e suas palavras traduziram meus sentimentos daquele momento distante. Agora depois de um certo amadurecimento, depois de ler o Crimp, por exemplo, percebi esse caráter político que sempre foi rarefeito na arte de muitos dos artistas que endeusamos, e como isso é muito importante agora, não podemos como pensa a Cristiane do comentário anterior condescender. Esses caras sabem muito bem o que estão fazendo, eles são como aqueles grandes profissionais, se erram uma vez, a gente releva, se duas, a gente desconfia, se três, tem que sair de cena, e deixar que toda a arte pregressa fale por si de sua importância. A aposentadoria é o melhor negócio pra eles, são normalmente milionários e não precisam ficar por aí gerando más influências. Não aceito Cristiane sua argumentação de cultura americana, não, existe uma inteligentsia crítica nos EUA que é da tradição intelectual de um Crimp, de um Jameson, de uma Rosalind Deutche. Essa mulher esteve aqui numa palestra na FAU-USP em 1999, e percebemos que existe uma consciência sobre arte política muito forte nos EUA, mais até do que aqui. Mesmo o Nelson Brissac nos tempos do Arte Cidade III que trouxe o Acconcci, falava que os artistas brasileiros não tinham uma noção bem estabelecida sobre especificiadade social do lugar para fazer site-specific na cidade, então que eles estariam concentrados dentro do Prédio do SESC Belenzinho, enquando os internacionais que já possuiriam trabalhos já realizados nessas instâncias poderiam galgar os plano da cidade, fora das edificações.
Bom isso é um assunto de longa discussão. De qualquer jeito parabéns pela consciência crítica.
Ismar Curi

Rubens Pileggi Sá disse...

Obrigado pelas considerações de ambos. Temos que pensar nisso, de fato.
Um abraço
Rubens